segunda-feira, 21 de maio de 2012

Ele continua aqui

Baixinho, barrigudo, cabelo pelo meio das costas e olhos de gude. Sempre com uma calça jeans rasgada e bem maior que suas pernas. Imprevisível que só ele, mas uma coisa a gente podia prever, todo mês de junho sempre nos fazia uma visita relâmpago. Durante alguns anos, religiosamente, aparecia lá em casa como quem não queria nada, bem no dia do seu aniversário. Fugia dos outros, corria pra gente.
Uma vez, subimos um barranco enorme de Toyota. Eu devia ter uns cinco anos.

-Tá com medo, Lu?
-De que? Vamos subir mais!
-Não conte a seu pai.OUVIU, LUÍSA??
-Ahahahahahahaha... meu pai, Tio Didi subiu um barrancão de Toyota comigo.

Via, sentia e sonhava. Mesmo a distancia sempre sabia quando algo não ia bem, ligava preocupado e nunca errava. Ficávamos horas sentados em um banco, na porta de sua casa conversando, rindo dos outros.

-Luísa Cross... Nunca deixe ninguém querer lhe amansar. Você é assim e acabou.

Se sentisse uma dor, tivesse uma tontura ou até mesmo se os cachorrinhos passassem mal, era pra ele que a gente corria. Tinha sempre uma receita da natureza e, o melhor, funcionava.
Fazia um ovinho à moda árabe como ninguém e revelava, só pra mim, os segredos de suas receitas.
Um dia eu cresci e passamos a conversar de igual pra igual. As vezes voltava a ser criança e fazia ele passar raiva.
Alisava aquele barrigão e dava dois tapinhas. Ele corria atrás de mim, dizia que ia me rumar a zorra, mas depois não se agüentava, caía na risada.
Há menos de um mês, passei em sua casa. Entre um assunto e outro pedi que estalasse minha coluna.

-Eu não sei se aguento.
-Ah, você ta aí engomando, nem me levantar aguenta mais.
-ENGOMANDO NÃOOOOO!
-AHAHAHAHAHAHAHAHAHA

Sentiu-se desafiado e aliviou minha dor nas costas. Saiu suspirando o peso da carga que tirou de mim. Depois disso, nos falamos algumas vezes pelo celular. Hoje acordei com um telefonema de minha mãe:

-Ainda dormindo, Lu?
-Tava, mas já vou levantar pra me arrumar. E aí, tudo bem?
-Ruderico...
-Teve o que? Hein, minha mãe... ele teve o que?
-Ele foi embora.

Perdi o chão. Um filme da minha vida passou pela minha cabeça em fração de segundos. Fiquei em choque, sem conseguir acreditar. Até que lágrimas começaram a cair descontroladamente. Uma relação de carinho recíproco. Aprendi muito, principalmente que ser autêntica não é um defeito.
Nosso amor é bem maior que o de sangue. É um amor de alma, de espírito. Um amor de família, mas aquela que a gente escolhe.
De uma coisa eu tenho certeza, a confusão ta armada na porta do céu. Ele vai chegar soltando sua gargalhada e falando:

-Tá vendo aquele miserável chorando ali?
-Faaaaaalso!
-Tá é feliz porque eu morri.

Tio Didi, uma lembrança sempre viva e irreverente em minha memória. Personalidade única e um senso de justiça incrível. Em vida, sempre foi o meu anjo da guarda, agora vai olhar por mim lá de cima e, com certeza, vou ouvir seus gritos quando fizer algo errado.
Foi embora da terra, mas está pra sempre em mim.
Saudade sem tamanho dessa figura.